O Mestre

Há vários níveis hierárquicos. Distinguidos por sensações, por adequações. Há aqueles que são agradáveis, cheios de pompa e glamour.

Há aqueles que tem praticidade. Que servem para algo. Neles todos tocam, todos usam.

Há aqueles que não tem a mesma utilidade, mas desviam sua própria função em prol dos outros.

E existe ele, branco, sem função, sem adorno, sem conforto. Apenas ele. Isolado, desviado de qualquer outra atenção.

Quando alguém entra na sala, não repara nele, não quando ele está distante, solitário. Mas ele tem algo que qualquer outro não tem. Ele é mais do que branco, ele é colorido, reflete o cinza da sombra e as cores da parede. Ele é leve, é arrastado.

É colocado no centro. Ele em um grito silencioso, implora por atenção. E é usado. Pisam nele, sentem nele. Colocam coisas nele.

Mas durante horas dentro de sua real função ele comanda. Porque quando alguém o usa, todos voltam sua atenção à ele.

Ele é o mestre. Ele manda, fica imóvel servindo de trono. Mas ele realiza sua função, sem reclamar, sem brigar. As vezes em momentos de agitação, pisam em sua cabeça, o quebram. Jogam contra a parede em um ataque de fúria. Não importa, ele é o mestre, o diferente, o líder.

BF

05-2015

Como me matei? Como ele se matou?

A você que está lendo esta carta. Saiba: Eu morri! Morri… morri…

Quando acordei hoje tive uma ideia absurda. Uma ideia cheia de graça. Se hoje eu morresse quem viria ao enterro? O que falariam no meu tumulo?

Contariam piadas? Veriam o gato que dorme na lapide e espera que os chorosos venham lhes dar comida?

Eu queria saber. Viver e esquecer que vivi. Por isso pensei e obriguei ao meu coração: pare de bater.

Disse ao meu sangue: pare de circular.

Disse ao meu cérebro: pare de pensar.

Agora, caro leitor, faça um minuto de silêncio pela morte do meu sistema. Mas não pare de ler. Tenha respeito. Eu morri!

Vê o sangue nesta carta? Sangue seco – eu espero que não morno – que mancha a carta.

Eu realmente gostaria de saber, o que diriam no meu enterro.

Então decidi: irei morrer hoje e ouvir. Mas como? Obriguei ao meu corpo: ouvidos não parem de funcionar.

Pensei em me cortar, atear fogo, tomar pílulas a mais, beber até cair, me drogar, colocar uma corda no teto e me jogar. Até pensei em entrar me uma banheira e colocar uma torradeira ligada dentro.

Triste ilusão. Sou pobre e não tenho nem banheira, nem torradeira. Então como todo bom pobre, morri: Fechei os olhos e obriguei meu corpo a parar.

Por isso…

ADEUS!

O AVESSO

O barulho da sirene era alto. Cheio de sons que incomodam. Ligaram para a delegacia dizendo: “Alguém morreu. Foi suicídio!!

Se alguém morre, deixe o pobre coitado morrer em paz!

Procurei a carta que dizia que era suicídio. Suicidas deixam cartas. Tem a necessidade de dizer: Ei me matei por que meu gato não me ama mais… Enfim, deixam pistas.

Cheguei na casa e não deixei ninguém entrar. Andei pela casa e procurei por um corpo. Não encontrei nenhum. Paredes vazias, tintas deixadas de lado, uma mesa e uma cadeira.

Quem foi o pobre coitado que morreu e não deixou o corpo, ou carta… ou sangue?

O banheiro vazio, a sala vazia, a casa inteira vazia.

Nada, além da cadeira e da mesa. Irritado, chutei a cadeira. Ela quebrou, frágil. E a farpa dela cortou minha canela. Peguei minha caderneta, arranquei uma folha e limpei a ferida.

Olhei para o sangue no papel. Agora havia mais um corpo vivo.

Escrevi uma carta de despedida. Pintei a tão sonhada banheira no azulejo do banheiro e a tão adorada torradeira na parede da cozinha.

Deitei no chão e fechei os olhos.

Agora era uma cena do crime decente: dois corpos e uma carta do meu adeus.

E morri junto com minha cadeira quebrada, ao redor, em pedaços, em frangalhos que somente eu saberia o que lhe aconteceu.

Hoje morreu um fantasma, um policial, uma cadeira e um papel.

BF

2014

Tudo Aquilo Que Jamais Vi

Tic-toc! Trava o relógio na parede. Um, dois, três, quatro… Os olhos buscam respostas. Contam aflitos o movimento do relógio. O som dos carros à distância são a orquestra da vida. A televisão do vizinho zune alta como se estivesse do seu lado.

Ela está ali, sentada. Vestido vermelho, cabelos caídos. Olhar preso no relógio da parede. Ela vê o movimento sem nem ao menos enxergar. Um aperto no peito, agonizante, doloroso. Falta o ar. Ela passa a mão pelos cabelos, aflitos.

Desliza pelo vestido, arranca! Rasga!

Ela coloca a língua entre os dentes, morde. Empurra para fora e toca o ar. Sem gosto. Ri sem humor. Muito na cabeça, pouco no coração.

Mesmo assim não pensa. Sangra!

Ela encosta a testa no azulejo frio. Estava escuro, mas então ela olha de novo e vê. Paredes brancas. Não, amarelas. Ou eram verdes?

O som muda. Não há mais buzinas, nem a roda deslizando no asfalto molhado. É música, é clássica. As roupas estão erradas.

Era um vestido, não vermelho, não preto. Era veludo, era verde. Com pedras brilhantes e no cabelo, uma rosa no coque.

A música muda e ela caminha. Estende as mãos aos céus. Não há mais paredes. Há areia pinicando os pés. O sorriso desenha nos lábios a promessa de felicidade.

Ajoelho e chora. Contente. Ouve a missa, ao fim, fiz amém. Mãos aos céus, coração a mil.

A chuva limpa a maquiagem do rosto e faz o vestido ficar pesado. É difícil levantar. Missão complexa. Não importa. Há paz. Há felicidade.

O mundo treme no céu e atinge o chão. As palmas e o alvoroço é gigante, tanto quanto o céu que desaba.

Ela caminha com certeza onde quer chegar. Ou onde foi ordenada que fosse. Cabelos brancos a saúda na chegada. Ela sorri, ele também. As rugas não diminuem a beleza do azul céu em seus olhos. Apenas o realçam.

No mundo que ficou para trás, ela ouve outro amém. Então ri e se desfaz em sua própria risada.

Quando para, não sente mais a areia e não há mais cabelos brancos.

Sua mão alcança o peito e o céu agora cai de seus olhos. Ela chora, incerta e também com toda a certeza do mundo. Não há missa, não há areia. Também não há mais agonia, nem dor.

Encosta a cabeça no espaldar do sofá e volta a ouvir: o carro passando na rua, a televisão do vizinho. Conversas na rua e o relógio gritando silenciosamente: tic-tac…tic-tac…tic-tac!!!

Ele para e procuro nele o segundo em que voltou seus olhos para o passo. A lembrança é firme, é cheia de carinho. É delicioso e sem sentido. E ela quer experimentá-la de novo. Lembrar de tudo àquilo que não viveu. Lembrar de um tempo em que lhe era permitido chorar e festejar. Em que não havia condenação, nem preocupação.

O vestido ainda está no chão. Inteiro e também decomposto.

O peito quente, o corpo frio. Os lábios tremem… Um murmurar: mais.

Então tudo começa: Tic-toc! Trava o relógio na parede…

BF

2014